A Reprovação na escola hoje
por Rita de Cassia da Silva
Este trabalho apresenta uma análise dos saberes das professoras da escola pública paulista, e é parte da Dissertação de Mestrado defendida pela autora no final do ano 2000. A pesquisa pretendeu investigar saberes e crenças de professoras a respeito da reprovação escolar, no contexto da implantação da medida da progressão continuada. Tendo como objetivo descobrir as possíveis fontes desses saberes e se haveria diferenças de concepções entre professoras primárias e secundárias realizamos entrevistas com 10 professoras de duas escolas públicas do ensino fundamental, cinco professoras de 1a. a 4a. série e cinco de 5a. a 8a, todas com pelo menos 10 anos de experiência profissional dentro da escola. Os depoimentos foram organizados em temas (papel do professor e da escola, reprovação e progressão continuada) e foram analisados tanto por sujeito quanto pelo nível de escolaridade que lecionam.
Os resultados apontam que ainda que reconhecendo o efeito estigmatizador prejudicial da reprovação, várias professoras consideram que individualmente ela pode contribuir para sinalizar as necessidades de maior esforço do aluno e/ou controlar seu comportamento inadequado. Apenas duas professoras são frontalmente contra a reprovação, e são exatamente as que têm maior clareza sobre a importância do trabalho docente.
Visando uma síntese elaboramos um quadro que sintetiza a adesão à reprovação e à progressão continuada, e demonstra quantas professoras se comprometem com o ensinar e, quantas estão se vendo no papel de mediador e quantas apenas interpretam a aprendizagem como atributo e responsabilidade do aluno.
Professoras |
Reprovação Sim Não |
Progressão Continuada Sim Não |
Papel do Professor Sim Não |
|
Secundárias |
03 02 |
02 03 |
01 04 |
|
Primárias |
03 02 |
- 05 |
05 - |
|
Total |
06 04 |
02 08 |
06 04 |
Síntese de distribuição das respostas das 10 professoras quanto à reprovação e a progressão continuada e papel do professor
Sintetizando e quantificando as respostas por temas, temos: das 10 professoras, 06 atribuem importância à reprovação e 04 que não atribuem. As que aceitam (03 professoras secundárias e 03 professoras primárias) justificam que a reprovação poderia ajudar o aluno a melhorar, tanto no comportamento como na aprendizagem (no domínio de conteúdos). Das 10 professoras, somente 02 (01 professora secundária e 01 professora primária) negam veementemente a reprovação e vêem a progressão continuada como promissora (mesmo assim apresentaram algumas ressalvas). Todas as outras, 08 professoras analisam a progressão com muitas reticências, não a vêem com "bons olhos". Entre as entrevistadas, todas as primárias, e apenas 01 secundária, se vêem como protagonistas do processo ensino-aprendizagem e dão especial destaque à interação professor-aluno, Já as quatro secundárias acreditam que a aprendizagem fica apenas a cargo do aluno. Vale lembrar que, em relação à função da escola, 07 professoras disseram que ela tem como função formar cidadãos e 03 professoras apontam a escola como: espaço de aprendizagens (01 professora secundária), espaço para desenvolver a inteligência (01 professora primária) e como preparadora do aluno para o mercado de trabalho (01 professora primária).
Diferentemente das professoras secundárias, as professoras primárias já estão analisando as conseqüências da implantação da medida da progressão continuada. Suas experiências concretas com a medida, adquiridas nesses anos de promoção automática (primeiro o CB e depois 3a e 4a), parecem nortear seus saberes e dilemas.
Analisando e comparando as professoras das duas escolas e seus saberes, encontramos uma diferença de profundidade de análise no discurso das professoras secundárias em relação às professoras primárias. Deparamo-nos com a força da formação continuada que parece mais decisiva para as primárias, pois elas analisam mais crítica e socialmente a escola indo além da sala de aula, e revelam uma consciência mais politizada em relação à nova medida governamental e ao próprio sistema escolar. Também apresentam mais clareza sobre o papel do professor. Durante as entrevistas, as professoras primárias se revelaram mais analíticas, mais bem preparadas para discutir assuntos referentes à escola, aos alunos e ao sistema, enquanto que as professoras secundárias produzem um discurso desarticulado e mais pobre, não revelando uma postura mais crítica. As professoras primárias são mais críticas porque:
. incluem o sistema escolar na análise e as condições de trabalho;
. Ampliam a discussão com questões das políticas educacionais (FMI, Banco Mundial);
. Destacam a importância do domínio dos conteúdos e criticam sua desatualização.
Já as professoras secundárias ora repetem o discurso oficial sem maiores questionamentos, ora superficialmente negam a especificidade da escola e seu próprio papel. Suas análises se voltam mais para aquela escola em que trabalham, para os alunos ou para as famílias dos alunos. Muitas vezes os discursos revelam total falta de clareza sobre o papel da escola e do ensino dos conteúdos escolares, levando a distorções perigosas como por exemplo, papel do ensino de ciências relacionado com higiene doméstica.
As primárias demonstram sua preocupação com domínio de conteúdos como essência da escola e a importância dos pré-requisitos como fundamentais para o aluno avançar no ensino. Coube a elas destacarem nas entrevistas a importância do saber ler, escrever, dominar os números e a história.
De um modo geral percebe-se que as professoras secundárias estão mais perdidas quanto ao seu papel e as professoras primárias apontam riscos e conseqüências da progressão continuada - que pode tanto desqualificar os conteúdos/conhecimentos quanto levar à ausência de compromisso/ responsabilidade com a escola.
Talvez a resposta para estas questões e para a diferença entre estes dois grupos de professoras tenha sua marca nas fontes dos saberes de cada grupo. Elas se fundamentam em alguns saberes que construíram em todas as esferas da vida. E, analisando essas fontes talvez possamos entender as diferenças.
Algumas professoras enfatizaram mais a vida enquanto alunas outras enfatizaram os cursos e leituras que fazem. Entretanto, as experiências na escola com alunos e com pares também são relevantes e sintetizam acentuadamente as diferenças entre os dois grupos de professoras. Apesar da formação ter sido pouco enfatizada, principalmente a inicial, ela também demonstra, através do quadro síntese a participação quase que maciça das professoras em cursos de formação contínua.
O quadro abaixo visa sintetizar as respostas das professoras em relação a estas fontes. Na vida, nossos dados revelaram experiências pessoais, experiências com familiares (irmãos/marido) e com a religião. Na escola é forte a influência de experiências com alunos, com pais de alunos, com os pares e com encontros nos HTPCs, que reforçam a força da formação continuada (e a negação da formação inicial).
Separamos o quadro assim: NA VIDA: Pes - experiência pessoal, Fam - experiência familiar, Relig - experiências com a religião; NA ESCOLA: Pais - experiência com pais de alunos, Co - experiência com os colegas e alunos, Men - mentores, htp - experiências adquiridas nos HTPCs; NA FORMAÇÃO: experiência com inicial e experiências com a continuada.
Experiências: |
Na vida |
Na escola |
Na formação |
||||||
Professoras |
Pes. |
Fam. |
Relig. |
Pais |
Co |
Men |
htp |
Inicial |
continuada |
Secundárias |
02 |
02 |
01 |
- |
02 |
- |
01 |
- |
04
|
Primárias |
- |
02 |
01 |
02 |
05 |
02 |
05 |
- |
05 |
Total |
05 |
07 |
0 |
09 |
Síntese da distribuição das respostas das 10 professoras quanto às fontes dos saberes docentes
O quadro mostra que na escola secundária temos: 03 professoras valorizando as experiências que adquiriram na vida); 02 valorizando a vivência na escola, as 02 com colegas/alunos e 01 em encontros no HTPC; e 04 professoras valorizando a participação em cursos da delegacia de ensino. Já na escola primária temos: 02 professoras valorizando suas experiências adquiridas na vida (irmão - marido e religião); 05 professoras valorizando a escola, sendo que 02 apontam o contato com os pais, 02 apontam os mentores (primeira professora, marido e a mãe) todas as 05 têm momentos de trocas com os colegas e participam de HTPC; as 05 professoras também citam participação em cursos e treinamentos. É importante salientar que a fonte nunca é única, pois as mesmas professoras citam diversas fontes, por exemplo, as duas professoras que citam a experiência pessoal são as mesmas duas que citam experiência com familiares, junto com uma terceira professora que cita a religião; das duas professoras primárias que citam a experiência familiar uma também cita a experiência religiosa. Assim, podemos perceber que a influência da experiência pessoal é forte para 5 professoras.
Nossos dados sugerem que a diferença entre as professoras primárias e secundárias pode ocorrer porque as primárias apontam muito mais a formação como estruturante de seus saberes e também a vivência na escola com seus momentos de discussão e reflexão. Já as secundárias pouco valorizaram esses espaços. As trocas com os pares, os momentos do HTPC e a formação continuada parecem fortes para as primárias, todas apontaram sua importância. Já as professoras secundárias, apesar de apontarem a formação continuada, não lhe deram grande importância ou se referem aos cursos e falam sobre o momento de formação com desprezo, principalmente a inicial.
A ambivalência entre ser contra e a favor da reprovação pode ser explicada pelas experiências destas professoras: na formação continuada elas têm sido convencidas do perigo do rótulo, do massacre do aluno, entretanto na vida vivenciaram experiências empíricas (com irmãos, alunos) que revelam o contrário: a repetência melhorou o aluno/o irmão e ajudou-os a tomarem consciência.
Também a vivência na escola aparece como importante e queremos lhe dar destaque, pois, a escola com sua cultura se revelou como lugar de construção coletiva de saberes que se enraízam na prática de nossas professoras. O discurso das professoras sobre a reprovação foi mais ou menos parecido, quando são a favor justificam com motivos parecidos e quando são contra os motivos também não se diferenciam tanto. Nesse sentido nos explica Orlandi (1996) que os discursos de professores se orientam por máximas que aparecem como válidas, como algo que deve ser. As professoras vivem dentro de uma cultura escolar que tem suas máximas, suas regras e rotinas e o discurso segue essas normas.
Analisaremos a seguir, cada uma destas esferas reveladas nas entrevistas, para a partir delas, entendermos o que cada uma tem oferecido às professoras em termos de fontes de conhecimento para seu saber-fazer.
Na vida
Parece claro que as experiências pessoais com a reprovação influenciam a visão que algumas das professoras têm sobre reprovar ou não. Curiosamente as suas experiências vividas acabam servindo de exemplos tanto para defender quanto para negar a reprovação. Tanto justificam como pode ser bom reprovar, quanto como não é bom reprovar.
Apesar das experiências pessoais e familiares com a reprovação levarem-nas a posições distintas, essas posições se justificam pela avaliação que fazem sobre suas experiências e generalizam para seus alunos. Assim, as que acham que ajudou defendem a reprovação para os alunos enquanto as que acham que prejudicou não querem repetir isso com os alunos. Algumas professoras acabam vendo as suas experiências pessoais com a reprovação um modelo a ser seguido ainda hoje. Apenas duas professoras, da escola secundária, apontam suas experiências passadas como exemplo para mudar, para não fazer igual.
De acordo Gil (1994) estas experiências pessoais fazem com que os professores tenham idéias, atitudes e comportamentos sobre o ensino que respondem a algumas experiências reiteradas, por isso acabam como algo natural ou óbvio. Estas idéias e comportamentos docentes, que este autor chama de espontâneos, influenciam aspectos essenciais do ensino, escapam à crítica e podem se converter em obstáculos. Se estas experiências são positivas elas também podem ser positivas no trabalho docente; se forem negativas, o professor pode ou repetir e não perceber o resultado decorrente disso, ou não querer repetir, como o caso destas professoras da pesquisa.
Um outro aspecto que os dados revelaram foi a influência da religião, que apareceu como um conhecimento objetivado. Queremos ressaltar esse dado pois, ainda que nem todas tenham feito referências a religião, é um dado relevante, já que as duas professoras, trouxeram sua experiência religiosa como estruturante de sua maneira de pensar e agir dentro da escola.
Na escola
Todas as entrevistadas salientaram a importância da aprendizagem profissional na escola, através de suas experiências diárias com os alunos, pais de alunos e com os colegas elas foram formando as bases de seus saberes.
Esses são conhecimentos e aprendizagens supervalorizados pelas professoras e mais valorizados do que o que aprenderam na formação inicial, sempre minimizada em seus discursos; reforçando a idéia de que o cotidiano da escola é um lugar de construção de saberes, tanto ou mais que os cursos de licenciatura feitos por estas professoras. Nesse sentido lembramos o que nos diz Candau (1996) que a escola é locus de formação e nela as nossas professoras aprenderam muito sobre a reprovação. E nela também tiveram que desaprender a reprovar e a reestruturar o que foi aprendido.
É forte a valorização das trocas de experiências nos HTPCs, sobretudo pelas professoras primárias, e conversas que elas têm com os pares, nos intervalos de aula. As trocas com colegas na escola foram bastante ressaltadas pelas professoras, muito mais as da escola primária do que as da escola secundária, que nenhum destaque lhes deram.Assim, a influência da cultura da escola na construção dos saberes destas professoras é forte. Suas experiências com alunos, pais e com o próprio conjunto dos professores reforçam que a escola é um espaço de formação docente, um espaço de reflexão. Espaço público de reflexão, como diz Gimeno (1996), que, quando bem ocupado, ajuda o professor a construir seu saber-fazer na sala de aula. As professoras primárias são exemplo disso ao revelarem que aproveitam bem seus momentos de HTPCs, encontro coletivo de reflexão na escola. Este espaço dentro da escola, onde há trocas de experiência, debates e reflexões parecem referência decisiva. Entretanto, apesar da existência desse espaço de trabalho coletivo, há quem se ressinta mostrando sentimento de solidão, pois parece que ainda lhe faltam mais trocas com os pares, ou ainda não são suficientes para lhe dar segurança no agir: ela acaba dizendo que sente falta daquela "malinha" que os professores mais velhos têm e não lhe passam.
As professoras também recorreram ao passado na escola - às histórias de alunos seus (e algumas vezes à própria história) - para exemplificar suas idéias e saberes a respeito da reprovação. Uma discussão a esse respeito encontramos em Mizukami (1998), que diz que, ao mencionar estes eventos mais do que explicitações conceituais, as professoras estão exemplificando conceitos com exemplos, "trata-se, muito mais de considerar o exemplo como conceito" (p.503). Talvez por isso, nossas professoras acabam dando um significado bem pessoal, utilizando a própria experiência como exemplo, quanto à questão da reprovação, e tiram conclusões a partir destas experiências vividas.
Na formação
Apesar das professoras negarem que a formação influencia sua prática de sala de aula, ela pareceu bem presente em algumas respostas. Esta valorização da prática, da experiência de sala de aula como mais importante que a formação, acaba sendo contestada por elas mesmas, quando mencionam termos, conceitos e concepções presentes em teorias pedagógicas que certamente aprenderam em cursos. Parece que são pano de fundo de suas ações que elas não valorizam na mesma medida que valorizam o "batidão".
As professoras primárias priorizaram mais a sua formação mostrando a força da formação continuada. Já as professoras secundárias destacam apenas as experiências do dia-a-dia como base de suas reflexões/concepções, dia-a-dia que pode comprometer suas concepções e análises. Talvez as professoras secundárias estejam perdendo esse espaço que é importante para rever crenças e saberes e apropriar-se de conhecimentos fundamentais para sua reflexão e para uma crítica social, coisa que as professoras primárias souberam fazer melhor.
A formação inicial não tem qualquer destaque nos discursos, entretanto aparecem forte os cursos/leituras posteriores e HTPCs. Ela foi negada pela maioria das professoras que entendem que esta aconteceu em um momento de pouca maturidade e preparo. Algumas das professoras mencionaram que não saíram da formação inicial com condições para lidar com a complexidade da escola, por isso valorizaram muito mais a experiência que adquiriram posteriormente dentro do exercício da profissão.
Apesar de negarem, algumas noções que as professoras apresentaram nasceram no momento da formação inicial, nos cursos que fizeram e estão enraizadas na prática docente. Estão cristalizadas no trabalho diário, estendem-se até hoje, mais de 10 anos depois. Um exemplo negativo dessa influência é apresentado pela professora quando diz que aprendeu no magistério e em livros e revistas médicas que a desnutrição impede que a criança aprenda, coisa que já foi contestada por pesquisadores da área de educação e da própria área médica (Collares e Moyses, 1996). Esse parece ser um exemplo de pensamento cristalizado, e no dizer de Heller (1970) alienado. Entretanto, esta professora afirma que aprendeu estas coisas em seu processo de formação. Hoje, por estar cursando a faculdade de pedagogia, tem chances (por causa do exercício da reflexão que estes cursos devem proporcionar) de reformular este aprendizado. E se ela não estivesse em formação? É evidente que a formação em serviço é fundamental para as professoras colocarem em xeque algumas concepções e para que possam construir seu próprio referencial teórico.
Considerações finais
Ao que parece a diferença existente nestes dois grupos de professoras, primárias e secundárias, é fruto de questionamentos que fazem nas reuniões com os pares e nos cursos de formação continuada. Aparece claramente o papel diferenciado da formação continuada para as primárias. Já as secundárias ficam com o "batidão" que lhes nega até seu papel.
Assim, talvez, as professoras primárias estejam mais preparadas para falar sobre a progressão continuada, porque nestes anos de experiência com a implantação da medida, foram e estão sendo formadas com cursos de capacitação, e isso certamente modifica seu discurso. Mesmo assim, elas não demonstraram que foram persuadidas o suficiente para aceitar que a reprovação não é necessária nessa escola de 'hoje'. Um exemplo disso é a que menciona alunos sem pré-requisitos sendo promovidos e diz: "...então por, sã consciência você não aprovaria, mas você tem que aprovar (...) isso frustra a gente, frustra demais". A grande frustração é de ter que aprovar mesmo não concordando.
Também nas respostas das professoras secundárias percebemos a força do discurso oficial, ou talvez da formação continuada, com expressões claras de que a escola mudou. A força da formação continuada aparece quando elas expressam que: antigamente falavam para a gente que tinha que ser... hoje eles dizem o contrário; comecei a ouvir opiniões novas; é preciso fazer diferente da escola tradicional. Está presente um discurso genérico salientando a cidadania, a formação de cidadãos críticos e conscientes. A escola hoje pretende formar cidadãos, diferente da escola de antigamente que ensinava conhecimento. O objetivo da escola hoje é a democratização do ensino e aparece claramente uma certa negação do ensinar como transmissão/assimilação do conhecimento.
Quase todas as professoras salientam o antes e o depois. Todas têm mais de dez anos de formadas, portanto viveram o discurso mais tecnicista e/ou uma visão clássica de escola onde se valoriza a transmissão de conhecimento e o rendimento escolar, que hoje parecem diluídos na necessidade de formar o cidadão. Daí, "hoje" o professor somente "auxilia o aluno" na pesquisa, é "orientador", é "aquele que conduz". Não "adianta forçar" o aluno a aprender. O "rendimento é do dia-a-dia". O professor "constrói saber junto" com o aluno, "parte da realidade do aluno", "usa o conhecimento" do mundo/realidade para melhorar a vida do aluno.
Será que as professoras deturparam o papel do professor do ideário construtivista? A resposta a essa questão não é fácil: por um lado pode ser que de fato elas tenham distorcido, vulgarizado e minimizado a abordagem, mas por outro lado pode ser uma contradição do próprio modelo que minimiza a função do ensinar, que perdeu seu valor. Modelo vulgarizado que pode estar sendo transmitido em sua formação continuada.
De acordo com Duarte (1998) alguns construtivistas, chegam a consideram que se o professor ensinar, transmitir conhecimento, poderá prejudicar o desenvolvimento cognitivo do aluno, assim, ao ensinar conteúdos o professor acaba atravessando todo o processo de construção do conhecimento. Para ele é o próprio modelo que traz implícita a concepção que tira o papel do professor.
Nossas entrevistas revelam que temos, na escola de hoje, tanto professores comprometidos quanto professores perdidos. Professores questionando as imposições de medidas e professores repetindo no vazio um discurso oficial descontextualizado. Professores que vivem dilemas e dúvidas e professores tentando modificar seus saberes para trabalhar com o novo modelo. Alega-se que os professores são ignorantes e não entendem a medida da progressão continuada, mas o próprio sistema escolar pode ter reduzido a medida à não-reprovação.
Nossos dados também revelam que os saberes que as professoras da escola primária trazem sobre reprovar implicam pensar em compromisso, responsabilidade, cobrança, domínio de conteúdo, melhora de conduta e valorização do trabalho docente; coerentemente, então, elas não são a favor de que a reprovação acabe (se não houver alternativas) e nem que a progressão continuada continue.
Ao conviver com dois modelos - o antes e o hoje - a obrigação de não reprovar mais provoca nas professoras uma tendência a questionar a reprovação, revelando que suas crenças e saberes precisarão de mais do que treinamentos para serem superadas.
A progressão continuada foi implantada no sistema sem os outros mecanismos que assegurariam o seu sucesso. Nem tudo o que está no projeto foi garantido a não ser a extinção da reprovação. A progressão continuada não veio aliada às demais medidas, o que foi implantado é apenas a não-reprovação. Não há os outros mecanismos que assegurem a aprendizagem e que projeto previa, como por exemplo: "atividades de reforço e de recuperação paralelas e contínuas ao longo do processo e, se necessárias, no final do ciclo; meios alternativos de adaptação, de reforço, de reclassificação, de avanço, de reconhecimento, de aproveitamento e de aceleração de estudos; contínua melhoria de ensino; forma de implantação, implementação e avaliação do projeto; dispositivos regimentais adequados; articulação com as famílias no acompanhamento do aluno ao longo do processo, fornecendo-lhes informações sistemáticas sobre freqüência e aproveitamento escolar" (SEESP, Planejamento/98).
Assim, não podemos continuar achando que as professoras irão se adequar mecanicamente com algumas "reciclagens" e treinamentos. Quando as professoras falam sobre reprovar ou não e sobre o que pode acontecer por causa da não reprovação, fica a insegurança quanto ao futuro da escola, e até mesmo quanto ao futuro do aluno, pois eles poderão não conseguir se dar bem na vida, e nem no mercado de trabalho, se saírem da escola "de qualquer jeito". São conseqüências dramáticas que no futuro a escola enfrentará.
Como salientam os nossos dados, muito do que as professoras sabem, fazem e pensam é fruto de uma construção com os pares, com os alunos e com as famílias. Considerar os saberes e crenças docentes implica também considerar que ainda que eles sejam frutos de construções que nasceram nas experiências de vida e na vivência dentro da escola, é forte e decisiva a presença e influência da formação continuada.
Barreto (1999) afirma que não é um decreto que muda toda a concepção de ensino que se tem hoje nas escolas, e sem o envolvimento dos agentes escolares qualquer medida poderá estar fadada ao fracasso. Entretanto, os professores não são vistos como agentes capazes de colaborarem também na elaboração de projetos de reforma da escola. É como se, ao criticar a progressão continuada, os professores fossem antidemocráticos e alienados. O perigo é que os professores acabam sendo desqualificados por suas preocupações, que, ao contrário, podem evidenciar a presença de seu compromisso e consciência. Ao considerá-los desqualificados, as propostas ficam sempre nas mãos de especialistas. Entretanto, nossa pesquisa sugere que temos professores dentro da escola, que sabem fazer a crítica sobre a mesma.
Este estudo alerta para a implantação de medidas educacionais que não podem continuar penalizando/ignorando os saberes e crenças dos professores, que precisam ser incluídos em tentativas de repensar a escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETO, E. S. S. Os ciclos escolares: Elementos de uma trajetória. São Paulo: Cadernos de Pesquisa, n. 108, p. 27-48,1999.
CANDAU, V. M. F. (1996) Formação continuada de professores, IN REALI, A. M. M. R e MIZUKAMI, M. G. N. Formação dos professores. tendências atuais. São Carlos: EDUFSCar.
COLLARES, C. A. L e MOYSES, M. A. A. (1996)Preconceitos no cotidiano escolar. ensino e medicalização, São Paulo: Cortez Editora.
DUARTE, N. Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar. Campinas: Caderno Cedes, n.44, abril/98.
GIL, D. et al (1991) El Aprendizage de Conocimientos Teoricos, In _______ La enseñanza de las ciencias em la educacion secundaria. Barcelona: Editorial Horsari, p. 55-72.
GIMENO, S. J. (1996) Educação pública: um modelo ameaçado. IN SILVA, T. T e GENTILI, P. (org). Escola S.A. quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE.
SÃO PAULO - Secretaria do Estado de Educação. Planejamento/98 e Subsídios. (PLANEJAMENTO/98 - Avaliação e Progressão Continuada. SUBSÍDIOS - Implementação do Regime de Progressão Continuada no Ensino Fundamental . Organização e Funcionamento do Ensino Médio). São Paulo: s/n., 1998.
HELLER, A. (1970) O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra.
MIZUKAMI, M. G. N. (et.alii) A reflexão sobre a ação pedagógica como estratégia de modificação da escola pública elementar numa perspectiva de formação continuada no local de trabalho. Águas de Lindóia: Anais do IX ENDIPE-Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, vol. 2, p.490, 1998.
ORLANDI, E. P. (1996) A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. Campinas: Pontes.