O conceito de crenças
Por Rita de Cassia da Silva
O centro deste estudo é o conceito de crenças e saberes. As crenças que queremos pensar são aquelas construídas no cotidiano. Procurando compreender as crenças e para conceituá-las, descobri que, apesar da expressão crenças ser amplamente registrada, ela quase nunca vem definida. A literatura funde ou mistura os termos, tais como: saberes, expectativas, concepções, atitudes, opiniões, representações, práticas, procedimentos etc.
O termo crença é um termo vago que vem diluído em outros termos e dentro de diversas teorias; às vezes ele pode ser circular e aparecer em diversos enfoques, com linguagens diferentes, significando a mesma coisa e, às vezes, ele vem acompanhado de outros termos para explicar os comportamentos ou tipos de pensamento.
Do ponto de vista psicocultural, o termo aparece sob o nome de pensamento, representação, orientações cognitivas, teorias implícitas, saberes, além de valores, expectativas, perspectivas e atitudes. São categorias vistas como parte da cultura e são estruturadoras de formas de pensamento e de comportamentos.
Do ponto de vista filosófico ou sociológico o termo crença pode se tornar circular, pois, além de se diluir dentro das correntes de pensamento, ele aparece junto a outros termos para explicá-lo, como o conceito de ideologia, por exemplo. Nesse caso ideologia pode ser explicada como um sistema de crenças, e o conceito de crença pode ser considerado um tipo de pensamento que é ideológico. Cada corrente tem uma linguagem própria para se referir ao pensamento humano ou ao conhecimento; podemos, então, entender o termo crença subjacente a outros termos, de acordo com as visões de mundo e de ser humano. Para nós a palavra crença não se contrapõe ao termo saber e nem significa um conhecimento pouco elaborado; ela é uma das formas do pensamento humano.
Temos clareza, neste momento, de que, para descobrir os “porquês” e o “como” da prática cotidiana, devemos investigar onde nos alicerçamos para pensar como pensamos e fazer como fazemos. Optamos em usar a categoria saber, em alguns momentos, pois, para nós ela abrange vários termos que nos explicará onde se alicerça o indivíduo para fazer as coisas do jeito que faz. Mas, em alguns momentos, usaremos também as palavras concepções, noções e crenças, para explicitar algumas de nossas formulações. Na verdade, o que queremos saber é: onde se alicerça o indivíduo para construir seus saberes cotidianos e suas crenças, que o levam a fazer do jeito que faz, acreditar no que acredita, e a pensar que assim está certo e é o melhor.
Como nossa concepção é a de que somos capazes de refletir sobre nosso trabalho (trabalho como atividade humana) e nossa vida, e capazes de transcender a alienação; não vemos o indivíduo como um mero executor de tarefas. Para nós o indivíduo atua como sujeito, nas suas formulações de objetivos e em suas estratégias de trabalho. Ele pode algumas vezes estar equivocado nestas suas formulações, por falta de espaço reflexivo e não porque não é capaz de construir conhecimentos acerca delas. Se este espaço lhe for garantido, ele terá a oportunidade de detectar contradições, analisar e buscar caminhos.
Democratizar o conhecimento significa socializá-los. Socializar a cultura e a produção intelectual humana, e permitir espaço, para o indivíduo, a fim de que ele possa construir a sua própria intelectualidade é fundamental. Se ele não tem conseguido ser um intelectual é também porque desconhece o espaço público para o exercício de sua intelectualidade. Na escola, pela forma como ela está estruturada, atualmente, lhe é negado o exercício de sua intelectualidade, pois nem sempre é dado tempo para pensar e refletir sobre os conhecimentos que são passados.
Assim, compreender a complexidade de nossa formação ao longo da vida é importante para sabermos como algumas crenças foram sendo estruturadas dentro de nosso ideário de vida. A forma como pensamos e como fazemos, as nossas concepções sobre como viver podem ter como pano de fundo crenças e mitos enraizados; muitas vezes o indivíduo não tem consciência deles e nem que eles determinam de maneira fundamental a sua vida.
Estudar as concepções, as teorias implícitas, os dilemas e o conhecimento prático que fazem parte da nossa rotina pode se constituir em uma forma riquíssima de investigação para levantar os fundamentos e as bases onde nos alicerçamos. Este pequeno estudo se propõe a pensar em como os indivíduos constroem algumas de suas concepções e crenças ao longo da vida, como cidadão, na escola e em seu trabalho e com isso repensá-las em outras bases que não os rótulos imobilistas.
A seguir, vamos refletir o conceito de crenças utilizando as idéias de Agnes Heller, filósofa Húngara, membro da escola de Budapeste, de corrente marxista e discípula de Lukács. Para Heller o cotidiano pode nos engolir quando não fazemos o exercício da reflexão.
Entendo que somos seres sociais, constituído e constituinte de nosso meio. Enquanto pessoa humana agimos e sofremos as ações da sociedade: construímos e somos construídos por ela. A sociedade é feita por nós e somos feitos por ela; portanto, somos construtores de cultura e de saberes e, ao mesmo tempo, somos construído por eles.
Vivemos em integração com nossos pares, e dentro de uma cotidianidade construída com todos os elementos humanos; participamos dela com todos os aspectos de nossa personalidade e em todas as esferas da vida: trabalho, lazer, descanso, atividade social, intelectual etc e vamos nos constituindo aí enquanto pessoas e enquanto profissionais. Enquanto profissionais passamos por um processo de profissionalização que se mescla com as fases de nossa vida pessoal: um começo de carreira que se casa com as expectativas da fase da juventude; um meio de carreira com a fase da vida adulta, a maturidade; e a aposentadoria, fim de carreira, com a meia idade, a entrada na terceira idade.
Deste modo, passamos por um percurso de vida onde acontecem mudanças de aspirações, de sentimentos e mudanças de sentido da vida e da profissão. Muitos saberes e crenças vão sendo estruturados e desestruturados nestas fases. Alguns são estruturados no momento de formação, no início de carreira, e outros serão ao longo da carreira que, nesse percurso, ou se afirmam ou se desestruturam.
A partir disso, acabamos construindo saberes específicos que dão um sentido à nossa pratica cotidiana. Construímos um modo próprio de significar nossa ação. Mas esta significação não é sempre individual; ela é também coletiva já que estamos inseridos num contexto que é social e cultural.
Pérez-Gómez (1992) diz que o conhecimento científico transmitido nas instituições de formação se aloja não na memória semântica; mas nos satélites da memória, isso quer dizer que a teoria aparece subliminarmente.
O trabalho que desempenhamos acaba seguindo uma rotina que nos põe em ação de forma relativamente consciente e racional, mas sem precisar avaliar o seu caráter arbitrário; logo, nem sempre escolhemos ou controlamos verdadeiramente nossa ação; muitas vezes agimos a partir da nossa personalidade, hábitos, caprichos, preferências, automatismos, angústias ou culpabilidades e sem um controle da racionalidade.
Provavelmente estas rotinas servem para reduzir a necessidade constante de processar informações, de forma que possamos estabelecer um padrão de comportamento que resulte na resolução de problemas em nosso cotidiano. No processamento de informações, existem antecedentes internos, que são crenças, e influem em nossos processos cognitivos. Esses processos cognitivos são construtos pessoais, princípios, conhecimento prático e imagens que construímos ao longo de nossas experiências pessoais e profissionais e que influenciam em nossas decisões e ações.
Estes saberes e crenças, que vão sendo construídos nestas rotinas de trabalho, tomam um caráter de validade psicológica à medida que resolvem problemas e vão dando sentido a algumas de nossas práticas, determinam formas de pensar e agir específicas. São saberes cotidianos que se tornam sólidos e cristalizados na prática de nossa vida. Passam a fazer parte da rotina, se cristalizam, muitas vezes deixam de ser conscientes. Porém, muitas vezes, acabam sem o controle da racionalidade, ficam repetitivos, e não permitem mais movimento, de forma que tenhamos um prisma destas experiências cotidianas. Heller (1970), diz que esta cristalização leva ao pensamento alienado:
“As formas necessárias da estrutura e pensamento da vida cotidiana não devem se cristalizar em absolutos, mas têm que deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação. Se estas formas se absolutizam, deixando de possibilitar uma margem de movimento, encontramo-nos diante da alienação...” (p.37).
Os conceitos de Heller (1970), cotidiano e pensamento cotidiano, pareceram-nos adequados e amplos para a conceituação pretendida, a respeito do que vem a ser o saber e as crenças. Ela caracteriza o pensamento cotidiano como tendo uma base de fé e confiança. Esta fé e confiança para a autora é afeto. O afeto, para ela, tem um componente cognoscitivo e um componente emocional, e é a base que nos dá segurança e nos leva a acreditar numa verdade, numa proposição ou opinião.
Vale lembrar que pensamento cotidiano e não-cotidiano está relacionado com vida cotidiana e não-cotidiana; são conceitos utilizados por esta autora e dizem respeito: o cotidiano à totalidade do ser humano, onde ele vive e assimila toda a sua dimensão, de ser humano singular e genérico, ou seja, toda a sua existência humana e histórica; já o não-cotidiano, que é também parte do cotidiano, as atividades humanas são realizadas para além do indivíduo singular. São para a construção da sociedade e nela estão as reflexões e ações que os indivíduos, integrados, realizam para que a vida em sociedade continue existindo, se mantendo ou se transformando (Heller, 1970).
A vida cotidiana é toda a vida do indivíduo, sua existência humana e histórica. Na cotidianidade as atividades e o modo de viver do indivíduo se transformam em atos instintivos, subconscientes e inconscientes, são irrefletidos e mecânicos. No cotidiano não há necessidade de se refletir sobre todas as ações já que muitas são automáticas. Isso pressupõe uma superação, uma necessidade de sair desta cotidianidade para que possamos nos movimentar em direção à reflexão. É necessário então um não-cotidiano. Caracterizamos o não-cotidiano como sendo todo o processo de conscientização, de reflexão sobre as atividades humanas. É no não-cotidiano que se produz o pensamento científico, a teorização e o processo de desalienação. A arte e a ciência são promotores do processo de desalienar o sujeito, já que levam à reflexão.
O indivíduo assimila a cotidianidade da época em que está inserido juntamente com o passado da humanidade, mesmo que esta assimilação não seja realizada conscientemente. Nesse sentido ele é simultaneamente ser singular, único, e ser genérico, parte do gênero humano. O genérico faz parte de todo indivíduo e se manifesta em toda a sua atividade de caráter social, mesmo que os motivos sejam particulares. O ser humano genérico é expressão de suas relações sociais, é herdeiro e preservador do desenvolvimento humano, por isso é um ser histórico.
Como ser histórico ele é também ser social: a história só pode existir se existir a vida humana, mas não uma vida isolada e, sim, em conjunto com seus pares; a vida humana só se desenvolve em conjunto. Assim, as relações sociais e a história são fundamentais para que o indivíduo se desenvolva e se constitua enquanto ser singular e ser genérico.
Para Heller o pensamento cotidiano não acontece separado das atividades da vida cotidiana e estas são modos de apropriação que estruturam o pensamento cotidiano, e têm a função de direcionar o indivíduo para satisfazer as necessidades vitais cotidianas; portanto, são mais pragmáticos, pois são destinados a resolver problemas. Problemas que requerem uma ação imediata, diferentemente do pensamento não-cotidiano que supera tal pragmatismo, elevando-se a um nível superior, dando lugar à ciência, à filosofia e colaborando, assim, para a superação do pensamento alienado que surge no âmbito da vida cotidiana.
Para esta autora, o pensamento é caracterizado por uma eleição de conteúdos. Esta eleição se dá pelo valor mais elevado que damos a uma situação concreta ou a uma idéia. Há uma carga afetiva relacionada ao pensamento, há sentimento. Os sentimentos surgem como reações afetivas aos diversos fatos da vida e são sentimentos de sim e de não. Deste modo, atração e repulsa são componentes do pensamento e leva-nos a aceitar ou refutar um fato, uma determinada situação, ou uma idéia, de acordo com o sentimento de sim ou de não (Heller, 1977, p.348). Podemos aceitar ou não um pensamento ou nos deixar conduzir ou não por ele, de acordo com a carga afetiva que jogamos nele. Isso explica a eleição de um pensamento, e a seleção para as tomadas de decisões do dia-a-dia. É este mesmo afeto que nos dá confiança e nos faz ter certeza, fé, em alguma proposição ou opinião.
Heller (1970 e 1977) nos dá uma grande contribuição com o conceito de saber cotidiano. O conceito de saber cotidiano é uma das formas do pensamento cotidiano e inclui: os conhecimentos aprendidos e transmitidos, e necessários para que os homens possam se movimentar no cotidiano; e o cotidiano, queremos salientar de novo, é toda a vida do indivíduo, tudo o que ele é e tudo o que ele faz. O saber serve para soluções de problemas imediatos que surgem neste cotidiano. O saber cotidiano é mais pragmático; não é um pensamento refletido e desalienado; ele serve para que o indivíduo tenha confiança ou segurança na verdade de algum fato ou situação e, assim, poder movimentar-se no seu dia-a-dia.
Este saber, no entanto, para Heller, pode elevar-se em objetivações genéricas para-si, se passar por uma reflexão. Segundo Duarte (1996), este para-si é a relação consciente que o indivíduo mantém com sua individualidade e com sua atividade; assim, certas cognições do saber cotidiano podem se tornar mais sólidas, quando passam por um trabalho de reflexão.
Estes saberes vão se transformando em formas estruturadas de pensar e agir. São saberes que se transformam em crenças, ou seja, adquirem uma base de confiança, e acabam por influenciar ou determinar as decisões e ações dos homens. As opções que ele faz, suas decisões e ações serão de acordo com os movimentos dele e de seu grupo, segundo o que é válido para eles.
Enquanto existir validade, um saber, uma crença pode permanecer; pode até ser polêmico, mas, por sua validade psicológica ele não modifica, e cristaliza-se em no nosso cotidiano; somente modificará quando para não mais for útil e, portanto, sem validade. A validade psicológica é um termo Gramsciniano e está relacionada ao valor que damos a alguma coisa ou idéia para fazermos as escolhas que fazemos. Esta validade psicológica seria o componente afetivo do pensamento e do saber cotidiano. Muitos dos saberes que construímos são frutos de uma escolha, escolha baseada em valores que dão sentidos aos mesmos.
Fazemos escolhas em cima daquilo que acreditamos ser o melhor, mesmo que esta escolha seja equivocada. Sempre acreditamos naquilo que traz sentido para nós. Escolhemos também a partir do conhecimento que temos das coisas. Há então, um saber e um sentimento que faz com que escolhamos uma coisa e não outra. Assim, toda crença tem embutida um saber e um sentimento, ou seja, um lado cognostivo e um afetivo.
Rita de Cassia da Silva
Psicóloga e Doutora em Educação
e-mail.ass.espacocrianca@yahoo.com.br
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