Uma reflexão sobre o trabalho docente a partir da análise do conceito de crenças
por Rita de Cassia da Silva
1. O cotidiano e o não-cotidiano
Este trabalho pretende levantar alguns pontos para uma reflexão sobre o trabalho docente, investigando as influências das crenças que norteiam a prática dos professores em seu cotidiano escolar.
Para esta reflexão os conceitos de crenças, cotidiano e alienação precisam ser explicitados, pois envolvem o professor na sua busca de conhecimento. O conhecimento neste estudo é o saber docente. O saber a que nos referimos é um saber específico que ajuda o professor a manter uma rotina diária sem que seja necessário refletir em todo momento sobre ele. O saber docente é construído a partir de conhecimentos e ações práticas. O conhecimento é um processo de apropriação e objetivação de todos os saberes produzidos em suas atividades ao longo de sua carreira. Este processo é algo que se dá na vida cotidiana, nas suas reflexões e ações concretas. E o que é a vida cotidiana?
A vida cotidiana é toda a vida do indivíduo, sua existência humana e histórica. Na cotidianidade as atividades e o modo de viver do indivíduo se transformam em atos instintivos, subconscientes e inconscientes, são irrefletidos e mecânicos. No cotidiano não há necessidade de se refletir sobre todas as ações já que muitas são automáticas. Isso pressupõe uma superação, uma necessidade de sair desta cotidianidade para que possamos nos movimentar em direção à reflexão. É necessário então um não-cotidiano. O não-cotidiano caracterizamos como sendo todo o processo de conscientização, de reflexão sobre as atividades humanas. É no não-cotidiano que se produz o pensamento científico, a teorização e o processo de desalienação. Essas atividades não-cotidianas são construídas de forma que sejam estendidas para a sociedade fazendo com que ela continue existindo e se modificando[i]
O indivíduo assimila a cotidianidade da época em que está inserido juntamente com o passado da humanidade, mesmo que esta assimilação não seja realizada conscientemente. Nesse sentido ele é simultaneamente ser singular, único, e ser genérico, parte do gênero humano. O genérico faz parte de todo indivíduo e se manifesta em toda a sua atividade de caráter social, mesmo que os motivos sejam particulares. O ser humano genérico é expressão de suas relações sociais, é herdeiro e preservador do desenvolvimento humano, por isso é um ser histórico.
Como ser histórico ele é também ser social: a história só pode existir se existir a vida humana, mas não uma vida isolada e sim em conjunto com seus pares; a vida humana só se desenvolve em conjunto. Assim, as relações sociais e a história são fundamentais para que o indivíduo se desenvolva e se constitua enquanto ser singular e ser genérico..
Deste modo o ser humano, enquanto singular e genérico, constrói sua consciência de “nós”, e se integra à humanidade. Junto com ela constrói a história da humanidade e da sociedade. Esta construção ele não realiza sozinho, mas sim em conjunto com o seu grupo e o que resulta desta construção repercute na sua história e na história da sociedade, e dá continuidade a ela]
Deste modo, a reprodução da sociedade não se dá pela ação de indivíduos isolados[iii]. Essa idéia de que o indivíduo por sua própria força e vontade pode construir ou modificar uma determinada situação social segundo o nosso ponto de vista não é real; ele pode construir atividades genéricas em-si, mas mesmo estas fazem parte do que ele incorporou de seu meio. O homem constrói sua história e a sociedade em parceria com seus iguais, e a saída de certas situações sociais só pode acontecer através de uma ação coletiva e não individual.
As crenças assim como os saberes, as ideologias, os valores e os preconceitos são uma construção social e individual. O sujeito age e pensa, pensa e age, através daquilo em que acredita. Entretanto, o acreditar do sujeito passa pelo modo como aprendeu a estruturar seu pensamento e como apreende a realidade em que vive. Usaremos aqui a palavra crença ou crenças como fruto de uma produção coletiva, como parte da cultura escolar e não como uma construção individual do professor.
É nesse contexto que a análise aqui presente pretende enveredar. Para tal análise, dividiremos o trabalho em partes. A primeira parte define alguns conceitos importantes para uma reflexão do trabalho docente. Já a segunda parte procurará entender as implicações pedagógicas destes conceitos, principalmente o de crenças, na atividade pedagógica. A terceira parte conta uma experiência com os professores da rede pública estadual, em uma cidade do interior paulista. Por último, a conclusão fornecerá pistas para algumas reflexões sobre o trabalho docente.
2 - as Crenças e a Alienação
Retomando o conceito de cotidiano e não-cotidiano, faremos uma relação deles com as crenças. Como já foi dito, a vida cotidiana e a vida não-cotidiana é a vida toda do indivíduo. Ele participa dela com todos os aspectos de sua personalidade e em todas as esferas de sua vida, trabalho, lazer, descanso, atividade social etc., e podemos dizer que esta vida cotidiana é espontânea, pois nem sempre precisamos estar refletindo sobre tudo o que fazemos.
Aliás, muitas de nossas ações são automáticas, já que as repetimos muitas vezes diariamente, sendo portanto atividades genéricas em-si (DUARTE, 1993), pois nem todo o processo destas atividades vem acompanhado de reflexão. Nem sempre ela é necessária, o que não quer dizer que nunca haja consciência do indivíduo em seus atos. Torna-se um problema quando todas as atividades dele não vêem acompanhadas de reflexão alguma, quando o indivíduo não estabelece nenhuma relação consciente com suas atividades, quando ele se cristaliza no em-si (em-si se refere à relação não consciente consigo mesmo e nem com sua ação). Nesse sentido, segundo HELLER (1970), a vida cotidiana pode se constituir num terreno propício para a alienação, mesmo não sendo necessariamente alienada.
A alienação outro conceito a ser definido neste trabalho, é todo o processo de fetichização da mercadoria levada para as relações sociais indiferenciadamente. O indivíduo passa a ser coisa e a coisa, mercadoria, passa a ter um valor maior que o do indivíduo. O indivíduo alienado tem seu comportamento e seu modo de pensar dirigido pela tirania de um poder impessoal que lhe dita as normas de conduta. Vivemos numa sociedade que reproduz as relações humanas a partir de uma dada estrutura econômica e quanto maior for a alienação produzida por esta estrutura econômica, mais alienação se irradiará na vida cotidiana ocorrendo um prejuízo entre o desenvolvimento do ser humano enquanto humano genérico e suas possibilidades de se desenvolver enquanto indivíduo humano, e também entre sua produção e sua participação consciente nesta produção.
Assim, entender a alienação produzida na vida cotidiana é importante para entender o trabalho docente. Também é importante refletir a alienação como sendo produzida no não-cotidiano. Se o pensamento cotidiano se orienta para a realização de atividades cotidianas, as idéias são necessárias apenas à cotidianidade, elas não se elevam ao plano da teoria, nem sempre são práxis, pensamento e ação. Este pensamento cotidiano é, então, fragmentado e nem sempre precisa ser avaliado para nos orientar socialmente. Quando ele é refletido, quando nos utilizamos do termo “correto” para avaliar uma ação, quando nos reportamos a uma teorização, mesmo quando esta representa os interesses de uma camada ou classe social, podemos dizer que entramos no terreno da reflexão, das atividades genéricas para-si (DUARTE, 1996). Para-si significa que, enquanto gênero humano, o indivíduo mantém uma relação consciente com sua individualidade e com sua atividade, passando por constante questionamento e desfetichização. Esse processo se estende na vida do indivíduo e da sociedade, ou seja, na vida cotidiana e na vida não-cotidiana.
Como vida não-cotidiana caracterizamos aquelas atividades que se referem à reprodução da sociedade em que o indivíduo está inserido. Algumas atividades dizem respeito à existência do indivíduo enquanto indivíduo, outras atividades o indivíduo as realiza para que a sociedade se reproduza, ou seja, continue existindo. Estas atividades da vida não-cotidiana estão relacionadas com a produção científica, com as teorias e com a arte.
Como a alienação é decorrente da estrutura econômica de uma dada sociedade e ela pode se originar nas atividades da vida cotidiana, também pode aparecer nas atividades não-cotidianas e nas estruturas sociais que construímos. As crenças também podem se originar na vida cotidiana e na vida não-cotidiana, nas atividades da sociedade.
Nossa sociedade é uma sociedade marcada pela divisão social do trabalho e por relações de dominação. Para que se mantenha assim, é necessário que os indivíduos não façam um constante questionamento e desfetichização, não saiam do em-si em direção ao para-si, que eles permaneçam numa constante submissão às relações de dominação, que aliás, também são uma produção[iv] e que não realizem suas possibilidades enquanto seres humanos.
Definimos “possibilidade humana” como a realização dos indivíduos em sua totalidade enquanto seres humanos e seres sociais. A alienação é um processo que cerceia os homens no ato de questionar, de pensar sobre sua ação e sobre as atividades produzidas dentro da sociedade, e impedem que os homens sejam capazes de dirigir a sociedade sem a dominação. Com isso fica também cerceada a possibilidade de humanização e de uma sociedade solidária onde os indivíduos tenham chances garantidas de apropriar-se do produto de suas atividades e de toda a cultura já produzida pela humanidade ao longo da história. Nesse sentido, o trabalho educativo precisa ter um caráter humanizador para não se tornar alienante e fortalecer as relações de dominação a que estamos submetidos.
Seguindo ainda a linha de raciocínio das atividades conscientes e não conscientes, produzidas na vida cotidiana e não-cotidiana, queremos agora situar as crenças. Definimos crença como sendo pensamentos, idéias, juízos, atividade mental do indivíduo. Utilizamos o termo atividade mental para nos referirmos a pensamentos ou juízos na construção das crenças. Sendo atividade, a crença pode estar relacionada aos interesses do indivíduo e também refletir uma projeção das aspirações e dos interesses de uma camada ou classe social e converter-se, assim, em ideologia, que caracterizamos como um pensamento não-cotidiano.
O termo crença é utilizado de diversas formas e com diversos enfoques. Assim, do ponto de vista psicológico o termo pode aparecer sob o nome de pensamento, representação, orientações cognitivas, teorias implícitas, saberes, além de valores, expectativas, perspectivas e atitudes. São todos categorias vistas como parte da cultura e da cultura profissional do professor e são o pano de fundo do contexto em que ele decide diante de situações específicas e definem tanto o seu pensamento quanto sua ação (conferir em Pacheco, 1995). Ele, o professor, irá interpretar a atuação de seus alunos tanto para o sucesso como para o insucesso escolar de acordo com essas construções cognitivas.
Do ponto de vista filosófico ou sociológico este termo se torna mais circular ainda, pois são várias as correntes e cada uma tem a sua própria linguagem para se referir a ele. Mas, numa perspectiva materialista dialética, que também tem vários enfoques, e a partir da qual optamos para falar e analisar as crenças, também encontraremos uma circularidade. Podemos encontrá-las situadas no interior de outros termos, ou seja , subjacente a algumas categorias mais abrangentes, tais como ideologias, senso comum, visão social de mundo, conjuntos estruturadores de valores, representações, idéias, teorias que se orientam para a estabilização ou legitimação, ou reprodução da ordem estabelecida ou que aspiram a uma outra realidade ainda não existente (conferir Löwy, 1985).
De acordo com o autor e sua linha de pensamento vamos encontrar a crença de modo implícito ou indireto. Assim, na interpretação de Gramsci sobre as ideologias, poderemos situar o nosso termo crença na categoria ideologia, pois, o entendemos como parte dela e como sendo um tipo de pensamento fragmentado e não totalmente dentro do real. Gramsci utiliza os termos ideologias arbitrárias e orgânicas (ou superiores). As arbitrárias seriam superficiais e fragmentárias da vida cotidiana, são tipos de pensamentos e opiniões (públicas) da vida cotidiana, são como o senso comum ou folclore. As ideologias arbitrárias são individuais ou de pequenos grupos e são artificiais, inventadas, de breve duração e com pouca incidência sobre o real e estão em contraste com a ideologia orgânica, que ele define como sendo a filosofia, que é mais hegemônica e com capacidade de se tornar classes nacionais, ou seja, são idéias aceitas pelos diversos grupos sociais de uma determinada nação, como sendo verdadeiras.
Desta forma a palavra crença pode ser encaixada em ideologia e pode ser tanto arbitrária como orgânica, pode ser de breve duração, pois podemos modificá-la, e pode ser mais estruturada e parte de um conjunto maior de idéias, ou seja, superior[v]. Gramsci afirma também que, enquanto arbitrárias as ideologias não criam mais do que movimentos individuais, polêmicas, etc. Não são completamente inúteis: são como erros que se contrapõem à verdade e a afirma.
A ideologia serve aos interesses de uma determinada classe e eleva-se ao plano de práxis[vi]. HELLER afirma que não existe uma linha divisória entre a atividade (pensamento) cotidiana e a práxis não-cotidiana ou o pensamento não-cotidiano, mas sim uma transição, ou seja, é um vai e vem constante. O que queremos dizer com isso, é que a crença pode então estar relacionada a pensamentos do indivíduo e refletir o pensamento de uma classe social, ou seja, um certo tipo de ideologia, e assim ultrapassar o campo da cotidianidade para o da não-cotidianidade, revelando uma ideologia a serviço de um grupo ou classe social.
As crenças, como o pensamento e a ideologia, vêem acompanhadas de um afeto[vii]. As crenças vêm acompanhadas de afeto, pois sem o afeto, o indivíduo não poderia aderir a certos juízos. O afeto é o que dá a garantia ao indivíduo de que certas produções são verdadeiras; o afeto se constitui por dois sentimentos segundo Heller e são: a fé e a confiança. Existe uma diferença entre fé e confiança: a segunda é um sentimento mais ligado à experiência, à moral e à teoria do que a fé, que está no nível do individual-particular, a fé é mais dogmática e a confiança é mais flexível. Quando o afeto estiver ligado à confiança podemos pensar que os juízos que construímos são provisórios e podem ser modificados à medida que se tornar necessário para modificar a orientação de nossa ação. Quando isso se cristaliza, torna-se um ato de fé, imutável, e pode-se incorrer em pré-juízos ou preconceitos (pensamentos estereotipados). Nesse sentido, as crenças podem enveredar para um certo tipo de ideologia e estarem carregadas de preconceitos, e pior, a serviço de uma certa classe social. O indivíduo liga-se a ela através de um sentimento que cristaliza seu modo de pensar, impedindo-o de modificar sua ação. Torna-se, então, uma não-práxis, uma alienação, uma atividade não transformadora.
Procuramos até aqui definir os conceitos que queremos utilizar para pensar o trabalho do professor e suas crenças. No próximo tópico pensaremos nas conseqüências das crenças quando alienantes e preconceituosas.
3 - implicações pedagógicas no trabalho docente
Para falar das implicações das crenças no trabalho pedagógico, queremos primeiro pensar em quem é o professor do qual estamos nos referindo. Podemos pensar nele como um sujeito social, alguém que tem uma atividade consciente e que reflete continuamente sobre a sua prática, que pensa a educação como prática social (SAVIANI, 1995), que exerce uma atividade mediadora no seio da prática social como um todo.
Acreditamos que este professor existe na escola pública, mas apenas como possibilidade, pois não podemos afirmar que ele atua conscientemente em todas as suas formulações e ações e que ele não possui uma prática que não seja alienante. Nos últimos anos os professores têm sido alvo de preocupação dos estudos educacionais. A preocupação nossa neste momento é a de pensar nele como um sujeito concreto que atua dentro da escola de hoje e não como aquele sujeito idealizado e pronto para a escola num futuro próximo. A escola que temos hoje, não pode ser considerada como uma escola humanizante e desalienada.
Os professores, pensamos nós, são sujeitos de um tipo de fazer e saber permeados de crenças. Crenças produzidas no cotidiano e não-cotidiano, crenças que podem ser reflexo de um processo de alienação e de preconceitos. Também são sujeitos portadores de crenças que norteiam sua prática, prática que muitas vezes promove o sucesso escolar. Não pretendemos colocá-los como os culpados pelo mau andamento do ensino público. Existe todo um sistema de ensino que garante o sucesso ou o insucesso escolar. Os professores são hoje sujeitos de uma ação que aprenderam ao longo da vida na sua história como alunos e dentro da própria academia quando de sua formação. Com isso podemos pensar que o professor é também reflexivo e tem momentos de reflexão. Ele não é um mero executor, não pode ser visto como objeto, ele é, sim, sujeito de um tipo de fazer e pensar. Entretanto, nem sempre conhecemos que tipo de pensar tem o professor, que tipo de fazer ele pratica, onde e como ele construiu esse pensar e fazer.
Se a sua forma de pensar e fazer vem acompanhada de constante crítica dos resultados obtidos com sua a prática, e crítica das conseqüências sociais do produto de sua atividade enquanto professor (para verificar se promove um processo de humanização dos indivíduos e da sociedade), então podemos entender que ele faz uma reflexão, pois ele ultrapassa a linha divisória entre as atividades cotidianas e as não-cotidianas. Deste modo, poderíamos falar que a ação do professor é uma ação que promove uma prática social humanizante, com crenças positivas e voltadas para a construção de uma sociedade solidária que promove a humanização. O sentido que queremos dar aqui, para o termo crenças positivas, é o de um pensamento não alienado.
Este pensamento humanizador dos professores da escola pública de hoje existe. Mas de maneira fragmentada, pois eles não têm apenas crenças positivas, eles são portadores de crenças permeadas de preconceitos e de alienação, pois são sujeitos sociais dentro de uma sociedade que é alternadamente alienante e não alienante. Entendemos que os professores se movimentam ora numa esfera e ora noutra e não têm consciência disso, e este pode ser o problema.
O não conhecimento destes movimentos e das conseqüências de sua ação se trata de atividade genérica em-si e que, muitas vezes, ficando apenas nisso, traz implicações pedagógicas sérias, pois impede os indivíduos, professores e alunos, de pensar as relações sociais construídas sob a dominação e a sociedade como produtos históricos, e com possibilidade da existência da não dominação. Impede-os de acreditar na possibilidade de mudança, de transformação a partir de sua própria prática, daquilo que são capazes de produzir enquanto seres humanos e seres sociais. Compreendemos que o trabalho educativo pode agir dentro desta realidade, realidade que é histórica, e por ser realidade histórica, é dinâmica e não pronta, dada, acabada. Muito menos a sociedade está pronta e acabada. A sociedade é construída, e essa construção se deu e se dá na história da humanidade, assim como a dominação. Por serem históricas, podem ser mudadas, já que quem faz a história somos nós, os indivíduos humanos. Só nós fazemos história e só nós podemos mudá-la.
A sociedade quando manipulada a serviço da dominação não permite que a individualidade humana se desenvolva e nem que as comunidades se firmem. A passagem para uma sociedade sem a dominação pode se dar quando os indivíduos perceberem que conviver socialmente significa participar coletivamente e politicamente da estruturação da sociedade. Ele não é um mero espectador ou mercadoria, mas alguém que é sujeito da história e como tal precisa participar. A escola exerce um papel fundamental aí, pois pode lhe dar essa consciência.
Tal processo vai depender dos tipos de crenças (do pensar e do fazer) que a escola promove e como ela se movimenta dentro da sociedade. Se não se conhece o que determina as próprias ações também se desconhece quais as implicações decorrentes delas, por isso é que o trabalho educativo tem um papel humanizador na educação e isso pode ser imprescindível para a possibilidade de transformar a sociedade humana. Se o professor desconhece esse caráter humanizador de seu trabalho, o seu fazer e pensar é fragmentado e produz uma prática também fragmentada.
Não podemos pensar em uma pedagogia somente como prática pedagógica, precisamos pensar o que pretendemos ter como resultado, como produto final, onde queremos chegar com as opções pedagógicas que fazemos, que tipo de pessoa humana queremos formar, que sociedade pretendemos construir com nossa prática educativa. Cremos que estas questões podem levantar pistas para uma reflexão sobre o trabalho docente e suas implicações.
4 - Uma experiência na escola pública
O trabalho de reflexão com os professores mostrou-nos que é possível produzir mudanças, que ela são graduais, e algumas vezes avança um pouco mais no sentido de humanizar a profissão docente e o ato educativo. Outras vezes retrocede pela falta de conhecimento das crenças que movem este ato educativo, mostrando com isso que a reflexão precisa ser contínua. Acreditamos que os pequenos avanços mostram que existem a possibilidades de mudanças, e foi acreditando, pensando e crendo nelas que realizamos um trabalho dentro da escola pública de uma cidade no interior do estado de São Paulo. O grupo se caracterizou por 10 professores de diversas disciplinas e com tempo de carreira variando de 03 a 25 anos. Utilizamos nesse trabalho filmes, textos e trocas de experiências para nossa reflexão que era semanal e durou 8 meses[viii]. Heller diz que a arte (filme que iniciou as discussões) e a ciência (os textos refletidos nas reuniões) podem ser desencadeadores do processo de desalienação, foi nesse sentido que escolhemos estas técnicas. Entendemos que as crenças podem ser positivas, se promoverem um processo de desalienação e humanização do trabalho docente, a análise das crenças com o auxílio do filme e dos textos, provocou muitos questionamentos e reflexões.
Trabalhamos com os professores um pouco a respeito das crenças que eles estavam construindo sobre seus alunos. Alguns professores acreditavam que seus alunos não seriam capazes de modificar a postura diante da própria aprendizagem. As falas dos professores eram: "...eles não se importam com nada, não querem aprender, vêem aqui só para bagunçar"; "...esses alunos não entendem que precisam aprender o que eu estou ensinando e que isso vai fazer falta depois para arrumar emprego. Eu tento mostrar isso para eles, mas eles parecem não acreditar".
Essas falas se repetiam sempre, e por professores diferentes. Para entender seus significados, nos reportamos aos conceitos que definimos na primeira parte deste texto, ou seja, atividades genéricas em-si e para-si. Queremos dizer que estas falas dos professores refletiam um em-si e não um para-si (pensamento refletido). No decorrer do trabalho, foi, gradualmente, ocorrendo uma passagem deste tipo de pensamento, em-si, em direção a um para-si. Não queremos com isso afirmar que os professores conseguiram fazer esta passagem, ou seja, que houve um processo de desalienação concluído. O que se deu foi um início de reflexão.
As falas mostravam também um tipo de pensamento estruturado, que no nosso entender refletiam crenças que se repetiam em outras falas, como: "...eu tento falar com eles, mas não adianta; eles param um pouco e logo começam de novo"; "...o fulano não tem jeito; eu desisto, pois ele não vai pra frente". Este pensamento demonstra crenças, que refletiam que os professores não acreditavam no próprio trabalho, nem numa possibilidade de mudança ou de transformação a partir da própria ação, pois achavam que os alunos é que tinham que mudar por si mesmos, e nunca por uma ação intencional, planejada, refletida por parte do professor.
A própria palavra "mudança" teve que ser por nós muitas vezes utilizada intencionalmente para criar um novo significado no pensar e no fazer dos professores[ix]. Assim, esse tipo de linguagem que tentamos utilizar não servia apenas para a informação ou instrução, mas também para produzir subjetividades. As palavras "mudança" e "transformação" foram empregadas constantemente durante os meses em que as reuniões aconteceram, com o intuito de que elas fornecessem aos professores a crença na possibilidade de, através de suas atividades, transformar a realidade daqueles alunos reais que eles tinham e daquela escola.
Os temas foram discutidos dentro desta perspectiva ao longo do trabalho, que foi de maio a dezembro. Algumas vezes trabalhamos textos, outras, relatos de situações de sala de aula. Com os conhecimentos da psicologia procuramos estar atentos aos sentimentos que iam surgindo durante as discussões para torná-los conscientes, e com isso revelar aos professores algum tipo de crença que estivesse impedindo a possibilidade de mudar a própria prática. Em alguns momentos estes sentimentos foram trabalhados de imediato no próprio grupo, em outros serviram para que nós, fora do grupo, refletíssemos sobre o trabalho que estávamos realizando e na medida em que estes sentimentos suscitavam mudanças ou acréscimos, procuramos reformular as estratégias e textos, a fim de garantir o conhecimento das crenças que os moviam.
Com isso procuramos prestar atenção nos movimentos que surgiam com as reflexões, para que construíssemos novos significados. No final, todos os temas foram discutidos dentro desta proposta.
No final deste trabalho fizemos uma última reunião para avaliação da experiência que realizamos, os professores relataram que as discussões os ajudaram muito na classe e que tinham acontecido algumas mudanças. Estas mudanças, disseram eles, ocorreram neles mesmos. Eles descobriram que precisavam mudar primeiro, para que depois os alunos mudassem. No entanto, mudar uma atividade, mudar algumas coisas na escola não significa desalienar o trabalho docente.
A escola mostrada no texto não mudou, ela continua fazendo tentativas de mudanças, o que mudou foi que ela se movimentou por alguns instantes de uma outra maneira, e em uma outra direção em busca de outras possibilidades. Por alguns instantes foi possível ver para além do cotidiano dela que ainda se caracteriza por uma cotidianidade alienada. Em alguns momentos o movimento foi em direção ao não-cotidiano.
O relato desta experiência foi utilizado para ilustrar as possibilidades de realizar o que a teoria estudada neste texto propõe, que seriam: possibilidades de humanizar o trabalho docente, de desalienar, de direcionar o trabalho docente para atividades genéricas para-si, pensar o cotidiano e o não-cotidiano escolar. É possível desalienar o trabalho docente desde que isso seja efetivamente refletido junto com os professores e a escola, e de maneira sistemática, planejada e intencionada. Com esta experiência foi possível perceber a possibilidade de movimento contrário ao daquele que a escola segue.
Também as crenças não foram completamente modificadas e nem ocorreram mudanças duradouras e efetivas no discurso e na ação dos professores. Não entendemos que uma crença ou que as crenças se modifiquem somente por algumas reflexões, pois existem determinantes que as constituem e neles estão valores, ideologias, tomadas de posições sociais de grupo ou classe. Isso não se muda através de pequenas e poucas doses de reflexão, pois são condicionantes de um sistema maior que é macrosocial. É necessária uma intervenção mais sistemática como parte de um projeto maior, ou seja, o de uma educação (formação) continuada.
O importante do trabalho realizado foi o de refletir com os professores a possibilidade de desvelar algumas das crenças e com isso permitir que se criem estratégias de mudanças na prática pedagógica. Desvelar as crenças seria também mostrar que elas existem e se afirmam à medida que aderimos a elas, e que são elas que podem estar condicionando a prática pedagógica sem que o professor perceba.
Também fizemos uma avaliação com os alunos e, neste dia, os alunos da 6a série perguntaram o que é que estávamos fazendo com os professores, pois o professor de matemática estava diferente, estava menos "chato". O termo menos "chato" usado por estes alunos, não é sinônimo de um professor que ensine melhor, pois aquele professor de matemática não modificou sua ação, apenas ficou mais calmo diante da classe que resiste ao seu autoritarismo. Ele ficou mais calmo mas não mais adequado, a calma veio porque em alguns momentos ele teve a oportunidade de parar para pensar e isso para nós significa que seu pensamento movimentou-se em outra direção. No entanto, ainda não havia encontrado formas de ação diferente que lhe dessem segurança o suficiente para modificar sua prática pedagógica, e também não havia tomado consciência do fracasso. Como já foi dito, o movimento feito foi por alguns instantes e este não foi suficiente para provocar uma mudança efetiva nem no discurso e nem na ação deste e dos outros professores. É preciso ir além do que foi feito e é necessário mais tempo. Acreditamos que isso é possível, bem como é possível provocar mais movimentos naquela e nas escolas em geral. Vemos tudo como possibilidades.
As discussões com os professores realmente provocaram algumas pequenas mudanças de atitudes, e estas se refletiam na sala de aula, proporcionando um interesse maior dos alunos na aprendizagem, mesmo que ainda muito pequeno. Mas, estas mudanças não foram suficientes para a transformação do próprio trabalho.
O que concluímos é que os professores precisam de tempo para refletir sobre sua prática, precisam aprender a investigar as causas dos problemas na sala de aula, precisam estudar para compreender o processo educativo, precisam ser sujeitos deste processo e não meros objetos, que somente executam os textos didáticos mecanicamente. Precisam transcender a cotidianidade do trabalho docente e refletir sobre alguns saberes já cristalizados que não produzem o sucesso escolar.
Considerações Finais
O saber docente é todo o saber que o professor constrói ao longo da carreira e da reflexão que ele faz da sua ação, ao longo de sua história como aluno e ao longo de sua formação acadêmica (SILVA, 2000). Isso revela que ele constrói uma experiência profissional a partir do que pensa e faz com seu próprio trabalho (DIAS-DA-SILVA, 1997). Se a sua reflexão decorre de pensamentos cristalizados num certo tipo de crença, crença que não produz a possibilidade de transcender as dificuldades que encontra, e que não levam a uma possível transformação, entendemos que não é práxis e sim uma não-práxis, atividades não transformadoras.
Para que os professores realizem este tipo de atividade, a de pensar e repensar sua prática, é preciso que se criem oportunidades. Estas oportunidades não precisam ser criadas a partir de regulamentações superiores, elas podem acontecer em momentos vários e a partir dos interesses daqueles que não se vêem satisfeitos com a situação das escolas e dos professores dentro da rede pública brasileira.
O trabalho de reflexão na escola precisa acontecer nesse sentido: diretores de escola com seus professores e alunos se mobilizando para a mudança e para não se conformarem com a realidade escolar, que se caracteriza por uma escola publica desvalorizada e sem qualidade. A reflexão pode ser uma tentativa de transcender o cotidiano, de sair de uma situação alienante que prejudica a escola e seus indivíduos no ato de ensinar e aprender os conteúdos da cultura humana, e de criar um espaço para refletir sobre as possibilidades de construir uma nova realidade diferente daquela existente na escola. É necessário aumentar o interesse pela reflexão dentro escola. Os professores precisam ter o interesse em parar para refletir.
MERCADO (1986), em sua reflexão sobre a escola e o trabalho docente, considera que não é suficiente uma mudança regulamentar do trabalho docente para incidir na realidade cotidiana dos professores e da escola. Ela considera indispensável conhecer as determinações que vão sendo construídas na dimensão cotidiana da instituição escolar e que definem de maneira fundamental o trabalho docente. Conhecer essas determinações significa conhecer também as crenças construídas na caminhada diária do professor. Isso seria entrar na esfera da vida não-cotidiana, seria tentar fazer uma nova síntese para proporcionar a humanização de seu trabalho. O conhecimento do professor do que ele pensa e crê é uma questão fundamental para refletir o trabalho educativo. As crenças são necessárias para atuarem de forma positiva, a fim de que os professores possam acreditar que há possibilidade de mudança, e que esta mudança acontece a partir de atos concretos que eles intencionalmente realizam.
[i]. Entendemos que a vida cotidiana ocupa um lugar central na história “é a verdadeira essência da substância social”. Segundo Heller (1980, p.20) ela é produto da atividade humana e é necessária para que os indivíduos possam se movimentar instintivamente e com um sentido de familiaridade, pois na cotidianidade a maioria de nossas ações fazem parte de um mundo já conhecido.
[ii]. Heller (1970), diz que o homem é “o representante do humano genérico“ e “não é jamais um homem sozinho, mas sempre em integração“ (p.21), e ele se coloca junto com seu grupo, classe ou nação a serviço da construção ou desconstrução humana.
[iii]. O termo indivíduo está sendo usado para caracterizar o ser humano, que é singular e/ou genérico, e não deve ser entendido dentro de uma concepção liberal do tipo “gente que faz”.
[iv]. Segundo DUARTE (1993), a alienação antes de qualquer coisa é um processo objetivo, “um processo onde as relações sociais cerceiam ou impedem que os indivíduos realizem as possibilidades de vida humana” (p. 61).
[v]. Segundo Gramsci (in Coutinho,1981) “enquanto historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade “psicológica”: elas organizam as massas humanas, forma o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição , lutam, etc”. Queremos colocar as crenças dentro desta validade psicológica que pode influenciar e ou manter o movimento que o indivíduo ou grupo faz em direção a alguma coisa ou fato.
[vi]. Segundo HELLER, a ideologia orienta e facilita a ação cotidiana dos indivíduos de acordo com os interesses de classe. “É indiscutível que uma ação correspondente aos interesses de uma classe ou camada social pode elevar-se ao plano de práxis, e nesse caso superará o da cotidianidade; a teoria da cotidianidade, nesses casos, converte-se em ideologia, a qual assume uma certa independência relativa diante da práxis cotidiana, ganha vida própria e, conseqüentemente, coloca-se em relação primordial não com a atividade cotidiana mas com a práxis” (p.32).
[vii]. De acordo com HELLER, o afeto (como o da fé e da confiança) é um requisito para que o indivíduo possa ter uma certa segurança sobre o que pode ser a verdade e para que ele se submeta a ela “já que não é possível dominar o todo de um só golpe de vista em nenhum aspecto da realidade e, por isso, o conhecimento dos contornos básicos da verdade requer confiança” (p.33) , no método científico, no conhecimento da realidade e nos resultados científicos de outras pessoas.
[viii] . Esta experiência ocorreu durante o período em que a autora realizava seu curso de mestrado, que foi de 1997 a 2000. Foi apresentada no IX Endipe em Águas de Lindóia-SP em trocas de experiências.
[ix]. Nesse sentido, queremos lembrar o que GIROUX (1992), fala sobre a palavra: que ela, a palavra, é fundamental na construção de significados e nas relações que estabelecemos na escola, ou seja, "...a escola é o espaço onde os projetos de linguagem impõem e controlam normas específicas de significados" (p.85).
Referências bibliográficas
COUTINHO, C. N.( 1981) Gramsci. Porto Alegre, L & PM.
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DUARTE, N.(1997), Ontologia e Historicidade: contribuição a uma reflexão filosófico-ontológica sobre o trabalho educativo. Araraquara - FCL/Unesp, 34 p. (mimeo).
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