Violência na Infância
por Rita de Cássia da Silva
1– Agressividade e Violência
A violência, segundo Damergian, é uma das manifestações externa da agressividade natural do ser humano. Mas, uma das formas mais cruéis e chocantes é a prática contra a infância. A agressividade, tanto dentro como fora de nós, no meio social, é algo que não podemos negar. A agressividade externa é uma projeção de nossos impulsos destrutivos para fora.
O que impulsiona o indivíduo no sentido de integração de sua personalidade é o conflito e a inter-relação entre o instinto de vida e o de morte. A vida perturba a morte, diz Freud (1920, apud Damergian) e daí surge à turbulência e a ambivalência. A manutenção da vida tem como condição essencial à inter-relação entre estas duas forças opostas das quais surgem as sensações, as emoções, desejos e atividades no ser humano. E este é o conflito que condiciona nossa vida mental. Administrá-lo é manter a própria vida, além do que, é a tarefa básica da mente humana. Isso faz com que a mente não fique paralisada, o que seria um risco para ela, assim, este conflito não pode ser eliminado, e é sim indispensável à sobrevivência do ser humano.
A agressividade em um indivíduo adulto e saudável é usada como indispensável para proteger a vida. O uso positivo da agressividade depende das condições do processo de desenvolvimento da criança, da interação que se estabelece entre as condições internas da criança com as condições externas que o meio lhe oferece.
Assim, agressividade faz parte do ser humano e é necessária à sua sobrevivência, já que lhe permite defender-se e manter-se vivo. Além disso, impulsiona para a ação, para uma atividade construtiva. O seu aumento ou atuação descontrolada transforma-a em violência. Desta forma, a agressividade natural que foi evolucionariamente útil, perde sua utilidade e se transforma em uma arma mortífera contra os outros seres humanos. A própria história mostra como o ser humano tem sucumbido a toda espécie de crueldade e massacre, indicando que há aí um fracasso no desenvolvimento de comportamentos que possam controlar a destrutividade.
As condições sociais adversas, como a miséria, fome, desemprego, falta de perspectivas, formam uma alquimia mortífera com as pulsões agressivas do ser humano e o resultado é o aumento da agressividade. O ser humano com sua sede de poder diminui sua capacidade empática diante do outro e as relações humanas se coisificam e se tornam cada vez menos humanas. Quando esse processo atravessa uma intensa crise e stress, há um desnudamento do indivíduo e o que emerge é o homem primitivo, incapaz de controlar seus impulsos, seus medos, seus rancores e seu desejo de destruir o “inimigo” oculto que lhe persegue. Rompidas as barreiras de seu ódio, este é extravasado contra os mais diversos alvos, não poupando a infância.
A violência praticada contra a infância, principalmente aquela exercida pelos pais, tem um nome: infanticídio. O infanticídio não é um fato novo nem privilégio nosso, está presente em todos os grupos sociais, tanto primitivos como contemporâneos. Sua forma de manifestação é variada indo deste a matança até o abandono.
Temos visto ultimamente pela mídia notícias de pais que espancam até a morte e mães que abandonam os filhos, não para que alguém cuide deles, mas para que morram. Quando é apresentado um caso que choca a opinião pública a própria mídia instrumentaliza e sai à cata de mais casos. Parece que a mídia necessita da violência para manter-se. Não obstante, estes acontecimentos são comuns, antigos e acompanham todas as sociedades e cada vez as estatísticas aumentam ao invés de diminuir. O grande problema da mídia brasileira é que ela não leva a reflexão alguma sobre as causas, apenas noticiam deixando claro que o culpado é apenas o pai, ou mãe, que são violentos ou cruéis.
Por que uma mãe abandona seu filho(a) na lata do lixo ou na porta de alguém? Por que uma mãe joga seu filho(a) no lago? Por que uma mãe deixa seu companheiro bater em seu filho, às vezes, levando-o até à morte? São perguntas que devem levar à reflexão. Parece que a sociedade capitalista fracassou na sua tentativa deixar seus indivíduos sadios e competitivos. Tornamos-nos consumidores e consumidores de violência. Parece que a sociedade capitalista, também, precisa dela para se manter.
Voltando o olhar para a criança abandonada, quando ela não encontra substitutos adequados para as figuras parentais, não tem onde descarregar sua agressividade inata e nem quem a ajude a lidar com ela. Assim, não pode desenvolver formas não destrutivas de expressar sua agressividade e corre o risco de ser destruída por ela mesma se houver bloqueio desta energia.
No próximo item vamos descrever com mais detalhes como a violência na infância foi sendo introduzida na história humana e como em alguns momentos tomou a conotação de disciplinaridade.
2 – A violência na infância
Historicamente, a infância sempre aparece com dados de vitimização de maus tratos, colocada à parte em todo contexto social, isto é, não participando, não contando como elemento significativo para todo e qualquer caminhar do homem.
Este é um problema que reflete a própria evolução da criatura humana, voltada sempre para si mesmo, onde a criança surge como objeto de carência afetiva, abandono emocional e violências do adulto, em função de toda uma patologia individual, familiar e social.
Segundo relatos de pesquisas realizadas pelo CRAMI (Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância), o agente agressor, ao contrário do que a cultura popular imagina, não é só padrasto, madrasta, mas os pais biológicos e principalmente a mãe.
Diz Stanislaw Krynski (1995), em “A Criança Maltratada” que a violência está profundamente ligada aos aspectos mais primitivos do homem: à violência propriamente dita, a destrutividade, ao instinto de morte e à violência como elemento de defesa, estando estes enraizados na estruturação das sociedades primitivas, onde a força era o ideal supremo.
Ligado a estes fenômenos que acompanham a história da humanidade, encontramos as mutilações, canibalismo, rituais de violência física e emocional, restrições e proibições, as mais diversas, encontradas até nos catecismos, circuncisões, infibulações, flagelações, tudo sob pretextos religiosos ou científicos.
Nasce como instrumento social regulador destes fenômenos, a disciplina imposta às crianças: ataduras, sapatos chineses, mutilações corporais de sociedades primitivas, os castigos violentos e cruéis.
Em “Vigiar e Punir” (Foucault, 1995) há o relato da disciplina instituída nas escolas, hospitais e escolas militares, onde a rigidez extrema reforçava o aspecto deste instrumento como assegurados do bem estar social.
Após o sentimento de indiferença da Antigüidade em relação à infância, ocorre a presença de dois sentimentos: um de irritabilidade e exasperação, culminando com a disciplinação e outro de paparicação, onde a criança servia para distrair o adulto.
P. Ariès (1991), nos conta que na Antiguidade, o infanticídio não só era tolerado, como também era incentivado, em determinadas condições e acima de tudo, eram sentimentos controladores.
A mudança do olhar em relação à infância, segundo Ariès, começa a ocorrer no final do século XVII, quando ela não é mais vista só como distração, mas sim sob o enfoque psicológico e moral, penetrando na mentalidade infantil para poder educá-la.
Tiram sua roupa infantil, por volta dos sete anos e a substituem pela do adulto, assumindo o ônus desta mudança. Assim são mandadas para a escola, começam a trabalhar, brincam com jogos de adultos. A discriminação entre sexos é muito rigorosa e são colocadas na mesma casta do proletário.
Propiciam então a cisão de crianças e adultos, pobres e ricos, sentimento de infância e sentimento de classe, feminino/masculino.
Essas crianças têm sua infância encurtada, sendo obrigadas a saltar etapas de seu desenvolvimento emocional, restando pouco tempo para fantasiar e sonhar.
A violência participa também, dos “jogos de guerra” para os homens e para as mulheres; ficam registrados maus tratos mais requintados: a humilhação, a dependência, o servilismo e a indefensibilidade. Os maus tratos mudam, também, de figura, de acordo com a classificação social da criança. A criança abandonada e indigente é um pária, a índia é sem alma, a analfabeta é sem classe. Há diferenças de maus tratos quanto à faixa etária: o infante, a criança, o escolar e o adolescente; e, quanto à classe social: o filho do operário, do burguês e do aristocrata. Os maus tratos mudam de figura e a “instrumentalização” se diferencia e se especializa. Antigamente se matava por abafamento ou afogamento, depois por gás ou envenenamento, agora é por fome, miséria, abandono e rejeição.
Pensando na sociedade medieval onde as crianças não tinham importância e conotação de pessoa, queremos questionar o seu lugar hoje, quando nos deparamos com maus tratos e abuso sexual.
O nosso século é chamado “século da criança”. Conta até com o Estatuto da Criança. Mostra uma criança descrita e aceita como fazendo parte da humanidade. A infância é exaltada, ela é fundamental na construção do humano e, portanto, necessita de cuidados. E assim, a família passa a ser a única responsável por tudo de ruim que lhe acontece, inclusive o mau trato. Esquece-se de considerar o mau-trato individual e coletivo - a criança vítima do indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade, em geral. É a situação da criança pertencente a grupos minoritários que sofrem agressões e violências de caráter: social, econômico, religioso e político. Isso acontece nas escolas e nas ruas, diferentemente da casa. Apesar de todo o progresso, a sociedade ainda é cruel com os menos favorecidos, principalmente a criança.
Estas crianças que são maltratadas e, freqüentemente assustadas, aterrorizadas ficam em permanente tensão, são excessivamente limitadas em seus atos e desejos normais, acabam desenvolvendo mecanismos reativos de defesa, onde desencadeiam também maus tratos. Elas reagem contra os adultos, lutam, irritam, incomodam, gritam, choram, ficam agressivas, hipercinéticas e malvadas; ficam doentes, psicóticas, epiléticas e psicopatas. Por todo o mundo há uma escalada da violência. A criança maltratada aprende a maltratar, cresce, e, às vezes, se isola, se deprime por medo de ser ela mesma violenta, e às vezes comete homicídio, estupros e toda espécie de violência contra o outro.
O abuso pode, muitas vezes, ter um significado diferente do que o é para nós adultos. A criança pode ficar tão embotada emocional e cognitivamente, que nada mais tem qualquer significado. Pode corrompê-la e torná-la fascinada - pelo abuso - ou torná-la, ela própria, alguém que abusa. Ela pode temer muito mais a pessoa que abusa dela, do que o próprio ato de abusar. Pode sentir ainda, um profundo amor pela figura de quem abusa dela e esse amor ser mais forte do que seu medo ou desgosto pelo abuso. Assim, nossas noções de justiça, proteção e cuidado podem ter significados irreais para a criança.
Como vimos, historicamente, a violência sempre teve uma função nas diversas sociedades humanas. Sempre foi usada como meio coercitivo. Entretanto, ela nunca levou a humanidade a um caminho (processo) de humanização, ao contrário, serviu para a destruição através das guerras, massacres, assassinatos.
Na criança, ela tem uma conotação de destruição muito mais violenta, visto que está em processo de crescimento físico, afetivo, cognitivo e de personalidade.
Como agravante dessa situação, entra em cena a permissividade social. Nossa sociedade é permissiva para com a violência, incorpora-a a seu cotidiano, de forma que não nos espantamos mais com notícias de assassinatos e brutalidades, cometidas indiscriminadamente contra adultos, velhos e crianças que inundam os jornais e noticiários. Nós somos permissivos para com a violência! Complacentes e acomodados! Às vezes cúmplices! Nós nos esquecemos: vemos, ouvimos, lemos e esquecemos! Negamos e esquecemos a violência cotidiana como esquecemos duas guerras mundiais! Fabricamos armas, aumentamos o poder de destrutividade! E o alvo é sempre o humano que começa a ser destruído desde seu início, ou seja, desde a infância.
Também podemos falar de violência transferida quando falamos de violência contra a criança. O individuo frustrado, oprimido pelas suas condições de vida e às vezes com vontade de agredir um desafeto seu e incapaz de realizar sua impulsividade, acaba endereçando sua fúria à criança que impotente em sua fragilidade não tem como se defender. E deste mesmo modo, a própria criança pode começar a transferir a violência, agredindo irmãos ou amiguinhos mais novos ou torturando animais e mais tarde, tornam-se elas mesmas adultos violentos.
Uma das formas de violência contra a criança é o abuso sexual. O abuso sexual produz na criança traumas e sintomas que pode perdurar pela vida toda levando ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). A esse respeito vamos, a seguir, apresentar alguns passos que são necessários serem observados no tratamento de crianças com essa realidade.
3 – Passos no processo de recuperação em casos de abuso sexual.
Segundo Gastão Ribeiro (apostila do curso de Trauma Infantil), os sintomas do transtorno de estresse pós-traumático, formam um processo em espiral que acionam os mecanismos biológicos mais primitivos que faz parte da nossa herança evolutiva. A reação do organismo para sobreviver a uma ameaça, é: fugir, lutar ou congelar. Quando as respostas de fuga ou luta são impedidas, a imagem do evento fica congelada, criando uma grande confusão nas pessoas, impedido-as de ter uma vida normal.
Os sintomas traumáticos não são causados pelo acontecimento desencadeador em si mesmo. Eles vêm do resíduo congelado de energia que não foi resolvido e descarregado; esse resíduo permanece preso no sistema nervoso onde pode causar danos corporais e emocionais. Os sintomas em longo prazo são debilitantes e freqüentemente bizarros e se desenvolvem quando não podemos completar o processo de entrar, atravessar e sair da "imobilidade" ou do estado de "congelamento".
A psicanálise nos ensina que podemos lidar com nossos conflitos de várias formas, podemos negá-los, projetá-los, anulá-los, ou reparar o objeto não danificado por nós como meio de evitar a culpa, ou podemos ficar tão inundados e esmagados pela culpa que caímos num estado de desespero. Podemos transferir a energia de um lugar para o outro, mas a quantidade de energia é constante. No caso de extrema violência ou de abuso sexual, em crianças principalmente, a energia fica congelada até que existam condições necessárias para reparar o desastre provocado pela violência.
Uma exposição à extrema violência pode afetar a criança através de influencias traumáticas sobre os processos de desenvolvimento em andamento, como a memória, cognição, aprendizagem e a personalidade. Estas crianças ficam fragmentadas, embotadas e precisam reunir os pedaços em si mesma para ter um senso de eu. O trauma pode colorir vários aspectos diferentes da personalidade, assim, ao menor sinal de intrusão pode aparecer irritabilidade e sensibilidade na criança.
A própria noção de trauma supõe um certo grau de desenvolvimento anterior livre do trauma, e no caso de crianças que sofrem abuso, deve haver também, uma noção de não abuso e de auto-respeito e autovalorização. Buscar esta noção é o começo do trabalho terapêutico.
Ernest Hartmann, citado em “Companhia Viva”, sugere alguns caminhos para uma análise da evolução dos traumas ocorridos por abusos. O primeiro seria a cura e resolução normal, embora o material traumático permaneça como algo separado e perturbador por algumas semanas ou meses, ele é gradualmente pensado, fantasiado e sonhado, a isso chamamos de “processo integrador habitual”; o segundo seria o encapsulamento, onde o material traumático não se funde com o conteúdo do sonho habitual e não se integra ao restante da vida normal. Portanto, a terapia ou aconselhamento devem ser feitos durante ou logo depois da fase aguda, senão é tarde demais. Um terceiro caminho e mais sério, é quando o trauma começa a colorir toda a personalidade, pois a exposição à extrema violência pode afetar uma criança, através de influências traumáticas sobre seu desenvolvimento. Neste caso a terapia imediata, de curta duração e de revelação da situação traumática é algo bom, porém, é fato que a maioria das crianças, cronicamente abusadas, quando chegam à terapia já se passou algum tempo e, assim este trabalho não será adequado.
Esta condição da criança pode exigir um processo de esquecimento, isto é, devemos ajudar a criança a conviver com o abuso, auxiliando-a a lembrá-lo, pois as verdades dolorosas precisam ser enfrentadas, mas é importante que antes ela esqueça primeiro, para lembrar depois quando estiver mais apta emocionalmente. Após este trabalho, outro se faz necessário: o “esquecimento” possível pela elaboração. O processo tem que ser gradual, nunca apressado. Será preciso explorar um aspecto do abuso de cada vez. Sendo assim, o trabalho com a criança precisa seguir algumas etapas para a recuperação, ou seja, ajudá-la a ser capaz de pensar e lembrar, juntando os sentimentos, a partir de uma perspectiva segura, protegida e esperançosa.
Enquanto esse mundo não-abusivo está sendo constituído, o terapeuta talvez precise respeitar a necessidade da criança de manter-se fora tanto da situação do abuso quanto do passado, existe aí a necessidade de esquecer. Também não devemos nos surpreender ao descobrir que o abuso desempenha um papel muito poderoso na criança abusada, mesmo na mais sadia simbolização, pois a criança se adaptou a ele.
Segundo Anne Alvarez (1994) precisamos respeitar o esquecimento da criança que sofre abuso. Uma criança assim se apresenta fragmentada e talvez precisemos explorar somente um fragmento de cada vez de sua experiência. É preciso seguir o ritmo da criança e explorar cada fragmento com ela, além de verificar o ego e o equipamento introjetivo que a criança tem para pensar a respeito de sua experiência. É preciso não apressar a criança abusada, pois um pensamento para ela, só se torna pensável por meio de um processo gradual muito lento.
Sintetizando, podemos pensar em algumas condições possíveis para o processo de recuperação da criança abusada sexualmente. Assim, num primeiro passo ou condição, a criança não pode lembrar do abuso até que saiba como lembrar, ela precisa ser capaz de pensar e lembrar; num segundo passo a criança talvez precise começar a lembrar em condições toleráveis e seguras, e ao mesmo tempo precisa esquecer um pouco, para construir um aspecto não abusado em sua personalidade. Um outro passo, o terceiro, a criança pode começar a ter fé em um mundo não abusivo, isso acontece em crianças que tiveram, de alguma maneira, um início de vida melhor antes da situação de abuso e cuja confiança não foi completamente destruída. E por último, numa quarta condição o lembrar e o esquecer ocorrem lado a lado, mesmo quando acontecem as assimilações e integrações e cura é necessário respeitar o desenvolvimento da latência na criança.
Podemos pensar em quais seriam as condições necessárias para um desenvolvimento mental mais saudável para as crianças que sofreram abuso. O conceito de reparação oriundo da psicanálise pode nos ajudar. A definição clássica de reparação seria a de consertar ou restaurar o objeto danificado. Entretanto, a definição de reparação que queremos desenvolver é aquela que permite o desenvolvimento, o crescimento e uma mudança genuína na condição da criança. Assim, podemos levar um paciente a querer reparar no sentido de transformar o objeto danificado em um objeto reparado. A atividade reparadora, nesse sentido, fortalece o ego e proporciona o crescimento. O desejo do self de continuar a existir ao longo do tempo é pré-condição inicial para esta reparação.
4 – Uma proposta de tratamento em caso de Traumas
Em crianças que sofreram abuso, como vimos anteriormente, é necessária muita paciência no tratamento. É preciso criar um clima onde a criança possa ela mesma decidir quando irá mexer no problema. Entretanto, existem algumas técnicas que podem ajudá-la a tomar essa decisão, quando ela descobre que nem sempre é preciso reviver a dor ou a sensação ruim da própria lembrança. Além disso, cada um possui seus próprios recursos para mudar e assim, a mudança deve ser de acordo com ela mesma.
Existem algumas técnicas muito eficazes que podem dessensibilizar o estresse traumático de uma forma tranqüila e suave. Algumas técnicas não estimulam a memória com todo o seu medo, terror e raiva. E nesse sentido as técnicas indiretas podem nos ajudar sem que obriguemos a criança a passar pela clássica catarse. As pessoas e as crianças, segundo Ribeiro (2006) não necessitam ter uma “visão” do que aconteceu. Podemos ajudá-las primeiro dessensibilizando e com o uso de Técnicas de Instalação de Recursos, onde utilizamos os próprios recursos que a mente de cada um tem. Estes recursos são lembranças saudáveis carregadas de energias positivas e são bastante eficazes no tratamento. Há lembranças de bons momentos gravadas na memória que são recursos internos valiosos para trabalho psicoterápico.
Entre as várias técnicas psicoterápicas existentes, vamos citar algumas, tais como a Hipnose, o TAT – Técnicas de Acupressura de tapas e o V/KD - Dissociação Visual/Cenestésica VIKD, que consideramos eficazes para o tratamento de traumas.
A Hipnose é uma linguagem especial onde se desenvolve um estado de melhor comunicação entre os dois hemisférios cerebrais (Robles, 2003). É possível explorar blocos de realidade no cérebro direito para traduzi-los ao esquerdo. A hipnose trabalha por uma via indireta, sem privilegiar nenhum dos cérebros. Os símbolos se traduzem em palavras durante o transe. Além do que, permite-nos modificar nesses mesmos termos, os próprios símbolos. O cérebro esquerdo é lógico, formal e objetivo. O cérebro direito é emocional e subjetivo. No cérebro direito se manejam os aspectos formais, a atenção difusa, o pensamento totalizador, o processamento, de forma simultânea, da informação contida em grandes blocos e tudo isso num clima de atemporalidade. Todas as representações do mundo emotivo aí residem. No transe o cérebro direito reconhece, com um nível mais alto de precisão, o que o esquerdo manifesta e vice-versa No cérebro direito, no inconsciente, estão gravadas todas as nossas vivências que são aprendizados que podemos aproveitar.
No transe hipnótico podemos mobilizar recursos mentais e fisiológicos, com um fim de acelerar um processo de cura física. No transe hipnótico as coisas são vividas, como num sonho onde tudo pode ocorrer: não existe sentido de tempo, as sensações são distorcidas, podemos flutuar ou ficar paralisados, afundados no piso; surgem, com freqüência, dissociações, de maneira que podemos ser, ao mesmo tempo, sujeitos e observadores do que está acontecendo, ou aparecer representados em dois lugares ou em duas formas distintas ao mesmo tempo. Vivemos e sentimos o que acontece, sempre há sentimentos presentes, e nesse sentido, com a criança traumatizada, podemos utilizar a linguagem simbólica ou metafórica, para atenuar essas sensações.
O emprego da metáfora vem sendo bastante difundido nas escolas de psicoterapias como uma ponte de comunicação. Segundo Freud, pensar por imagens é estar mais próximo do inconsciente do que pensar por palavras. Há, uma integração de dois níveis de linguagem: a consciente e a inconsciente (Bauer, 2002).
A metáfora por ser uma analogia pode ser usada como um paralelo entre coisas diferentes, já que ela é uma semelhança entre coisas diferentes. Seu uso no tratamento de trauma pode ser muito eficaz se utilizada juntamente com outras técnicas.
O Uso de hipnose e metáforas em um tratamento de traumas pode ser bastante útil. A Hipnose não é uma forma de fazer psicoterapia e sim uma ferramenta que usada de forma correta facilita os processos de mudanças na psicoterapia. É um estado alternativo de consciência onde o indivíduo sente ou experimenta mudanças de sensações, percepções, pensamentos ou comportamentos. A Hipnose ajuda a pessoa a se internalizar e a diminuir a resistência. É um modo de relaxar que provoca uma internalização permitindo que a pessoa resgate (ou encontre) as saídas para os seus problemas e seus recursos naturais. O tratamento e a dessensibilização de traumas com a hipnose e as técnicas de dessensibilização é um trabalho cuidadoso, protetor e feito passo a passo (Ribeiro, 2006).
A hipnose internaliza as pessoas e diminui a resistência (ativação do lobo esquerdo), aumenta a capacidade dedutiva (giro frontal superior), aumenta a visualização e a criatividade (lobo occipital), Portanto a ferramenta hipnose potencializa qualquer informação, permitindo mudanças mais rápidas. A Hipnose atua no cérebro em várias áreas, escapando a armadilha de Scaer (a área de "Broca", responsável pela fala, é afetada, com isto as terapias que são cognitivas se tornam ineficazes para abordar os traumas). Além disto utilizando símbolos (metáforas) como ferramentas permite um trabalho indireto com Traumas (Ribeiro, 2006).
Uma técnica de dessensibilização interessante é o TAT, desenvolvido por L. Fleming e é um método eficaz para desativar memórias traumáticas, fobias, crenças negativas. Quando a pessoa focaliza a atenção sobre o que aconteceu e assume a postura da TAT, que é técnica de dessensibilização ela imediatamente começa a se sentir melhor e o trauma começa a dessensibilizar (Ribeiro, 2005). O TAT, através de Digitopressura, ajuda a criar uma nova conexão entre a “memória celular” e a função visual permitindo, quando bem sucedido, uma integração saudável da experiência emocional traumática (Ribeiro, 2006).
Outra técnica é o V/KD. Para o V/KD é necessário, apenas, ter uma atitude de focalização receptiva, é preciso criar uma conexão entre a memória celular e a função sensorial visual, o que se denomina Observação Dissociada. Os pensamentos e intenções são coisas reais, com energia real. São instrumentos importantes e valiosos no processo de cura. Por exemplo, é o pensamento original de “Não” que retém o trauma e continua a mantê-lo distante de você. Quando você muda este pensamento para: “Tudo bem, você aconteceu e existe”, então há possibilidade para uma nova relação entre você e aquela pessoa ou evento existir. É como a experiência comum de: “Hei, você sempre esteve ali, mas realmente nunca o percebi!” (Ribeiro, 2006).
O simples fato de colocar a atenção naquela pessoa (ou trauma) é uma declaração da intenção em reconhecer sua existência, apesar disto acontecer somente em seus pensamentos. É como se você fosse um grande rei ou rainha concedendo a alguém uma audiência. Você pode continuar ignorando um trauma pelo tempo que quiser, mas uma vez que concorda em ocupar-se diretamente dele, dá o primeiro passo para curar sua relação com ele.
Dentro desta perspectiva de uma Observação Dissociada existe uma técnica que se torna extremamente útil em dessensibilização de Traumas e Fobias o V/KD. A Dissociação Visual/Cenestesica V/KD é um método criado por Cameron Bandler (1978), para tratar de sentimentos negativos associados a uma a memória traumática, fobias, entre outras. O VK/D utiliza a dissociação onde as emoções negativas são visualizadas a partir de uma perspectiva visual alterada (Ribeiro, 2006).
Consiste em observar o evento ou trauma de "uma posição de observador externo". O cliente não deverá entrar em contato com a “memória", mas sim “observando” de fora, olhando-a. Este deslocamento estimula a aquisição e um entendimento da situação, diminuindo a emoção associada ao trauma. O V/KD se torna mais eficiente e rápido quando acompanhado pelo conceito de instalação. Acaba se tornando uma arma útil e atual na dessensibilização do Trauma (Ribeiro, 2006).
As técnicas mencionadas aqui são recursos, assim como outras não mencionadas, para ajudar no tratamento de traumas. Acreditamos que elas provocam profundas mudanças internas de forma mais rápida. Mudanças prodigiosas e invisíveis, mudanças que se referem ao plano físico e ao mesmo tempo, metaforicamente a processos intrapsiquicos. Podemos dizer que acontece uma ação reparadora que leva a uma transformação da mente danificada pelo trauma.
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